quinta-feira, novembro 27, 2003

Milagres


Ouvi no telejornal que vai ser reconsiderada a canonização dos "Pastorinhos de Fátima", já beatos. O processo vai ser reaberto deviso à suposta cura milagrosa de uma criança, que sofria de diabetes, e que ficou curada depois de a mãe ter rezado durante a transmissão televisiva de uma cerimónia religiosa em Fátima (teria sido o 13 de Outubro?).
O próximo passo é a realização de exames médicos à criança, como dizia alguém da Igreja, "por grandes especialistas médicos, todos professores universitários de medicina".
Questão em que fiquei a pensar: os médicos são/têm de ser católicos?
O que pode ser respondido por duas outras questões: o milagre é/tem de ser evidente a toda a humanidade ou apenas aos católicos?
Confesso que nenhuma das duas me deixou muito confortável. Diria mesmo que, entre elas, venha o diabo e escolha! Neste caso, a igreja...

Ps-e esta da transmissão televisiva, então...

Espero as vossas opiniões!

quarta-feira, novembro 26, 2003

Oráculo


Acreditar em deuses, fazer deuses de nós próprios. Que deuses somos ou seriamos, que voltas demos à máquina para que nos dissesse alguma coisa que eventualmente não somos.

Vicissitudes sagradas, ou nem tanto, a voz do oráculo. Interpretar, como a outra parte da estória, fazendo com que os mesmos deuses novamente estejam certos nos erros que cometeram.

Nós, apenas homens.
Nós, afinal deuses:


quinta-feira, novembro 20, 2003

Estórias do Comboio


Sem querer fazer concorrência ao J., não resisto a partilhar duas estórias que se passaram comigo recentemente. Uma delas foi há pouco, na viagem de volta para casa, pelo que a coisa ainda está fresca. Sem dar conta, fez-me lembrar de uma que já aconteceu -e me impressionou muito!- há uns tempos, e com o mesmo motivo.

As trocas de olhares

Não estou necessariamente a falar de flirts. Também os há no comboio e não é novidade nenhuma. Mas às vezes há olhares que comprometem mais do que isto. Talvez o embaraço de olhar alguém nos olhos, sendo ao mesmo tempo olhado. A incerteza de não saber o que pensar, estando a ser julgado pelo outro também.
Há olhares que não são nada disto. Poderiam eventualmente ser de flirts, muitas vezes são coisas bastante diferentes.

Olhar número um: O Predador

Aconteceu comigo hoje. Já saí tarde, e como bónus, trouxe trabalho para adiantar em casa. Como muitas vezes faço, para aproveitar a viagem vou a trabalhar no comboio. Geralmente a ler coisas, já que escrever é um bocadinho mais impraticável (embora em tempos de necessidade...). Entrei nos Restauradores, faltavam 8 minutos para o comboio partir. Sentei-me no primeiro conjunto de lugares vazios que vi (mais uma vez a vontade de evitar os outros olhares?). Os bancos estão dispostos em conjuntos de quatro, virados uns para os outros dois a dois. Nos bancos em que me sentei, os da frente eram vermelhos, reservados a grávidas e deficientes. Como se tem de dar prioridade, geralmente são os últimos a ser ocupados. Seria de esperar tanto mais neste caso, com o comboio previsivelmente vazio dado o adiantado da hora.
Pego nos meus papelitos e começo a ler. Às tantas ouço uma amena cavaqueira caminhante. Levantei os olhos e lá iam eles, um rapaz e uma rapariga na casa dos vintes e uma senhora já mais velha, todos muito divertidos na conversa. Por coincidência, o rapaz volta-se para trás e olha para mim. Ou seja, os olhos nos olhos.
Muitas vezes pergunto-me o que passa de nós quando olhamos alguém, se os olhares são transparentes sem sabermos e o que pensamos passa assim, com a maior das ligeirezas.
-Vai voltar para trás e vão sentar-se ao pé de mim, pensei.
Bingo! Eles já lá iam, havia lugares vazios ao fundo da carruagem, mas só oiço o rapaz dizer: -Ficamos já ali, há lugares.
E nem mais! Ei-los sentados ao pé de mim, ocupando os três lugares vazios entre tantos, sendo dois deles justamente os ditos bancos vermelhos! Mais, o dito rapazinho senta-se mesmo à minha frente.
-Há lata pra tudo e este é tem a mania que é chico esperto, pensei, e enfiei ainda mais a cabeça nos papéis. Mas a coisa prometia...
O rapaz e a rapariga sentam-se lado a lado. Mais, ela põe a mão no ombro dele. –Boa, pensei, ainda por cima são namorados.... Observo as mãos dela. Aliança de comprometida na mão esquerda. Ele levanta a dele, aliança igual.
O tipo não despegava. Fazia graçolas, olhava para mim. Continuou nisto a viagem toda. E a namorada, sem perceber nada: -Ai amor, ainda temos o jantar para fazer... Ou seja, viviam juntos. Saiam, saiam, era só o que eu pensava. Para meu azar, foram quase até ao fim da linha, saíram numa estação antes da minha.
Olha o que me havia de calhar na rifa, pensei, umas figuras destas, se a namorada o topa, ainda sou eu que os tenho de aturar...

Olhar número dois: Quero um buraco para me enfiar!

Mais uma vez estava nos Restauradores. À espera, dentro do comboio parado, muitos bancos vazios. Estava sentada de frente para as portas, via toda a gente a entrar e a sair, ao acaso, o movimento de fim de tarde. Entre eles passou um rapaz, com ar de ser um pouco mais novo do que eu. Olhei-o, a imaginar que idade teria. No mesmo instante ele olha para mim também, e ficámos a olhar um para o outro, de olhar inexpressivo.
Ele vem e senta-se à minha frente. Deixei de olhar e voltei a baixar os olhos para o livro. E fiquei pra morrer... Só ao olhar para baixo percebi que ele tinha o braço esquerdo amputado acima do pulso!!
Devo ter corado violentamente. Fiquei sem saber o que fazer ou pensar, fiquei em pânico! O pior, é que senti que ele podia aperceber-se disso. Eu não tinha olhado para ele por isso, era-me completamente indiferente a circunstância de o braço dele. Simplesmente, as duas coisas associadas produziam uma estranha combinação que me causava o embaraço total!
Lembro-me que vim o caminho todo a pensar se lhe devia pedir desculpas. Mas afinal de quê?!, só pensava.
Eu já não sabia o que fazer, só queria não estar ali. Mais uma vez foi o alívio quando saiu, ironicamente na estação precisamente antes da minha...

Conversar com os olhos

Onde se demonstra que a circunstância do olhar pode ser muito embaraçante. No comboio geralmente as pessoas não falam. Não falam com palavras, talvez, mas inevitavelmente falam com os olhares. E está lá tudo: a fanfarronice, a palavra agressiva, a pena, o embaraço. Os outros são o desconhecido e o pensamento alheio é sempre um grande mistério...

terça-feira, novembro 18, 2003

Das Coisas em Volta


Hoje recebi um livro pelo correio. Mais uma vez, enviado por pura simpatia e desejo de partilha. De sorrir, quando o vemos lido por outra pessoa, quando sabemos que alguém recebe o que enviamos (quase) à toa.
Recebi o livro vindo da Letra, bem acondicionado. Senão vejam:



E tenho pena que o não vejam ao vivo. Está muito mais bonito, garanto-vos, com a minha morada também.
Vou enviar o envelope de novo, já prometi. Veio da Alemanha, depois de Lisboa para Lisboa. E a seguir, para onde irá?
Tenho um feeling que para Madrid, a fazer companhia ao Poe. Quem sabe...
Mais uma vez, as coisas em volta das coisas...

segunda-feira, novembro 17, 2003

A Solidão do Desconhecido




"E não sabeis que é ainda incerto (e creio que o será sempre para a ciência humana) se o mundo é finito ou, pelo contrário, infinito. E se ele fosse verdadeiramente infinito, como poderíeis vós afirmar que as dimensões da esfera estrelada são proporcionais às da orbis magnum se esta, em relação ao Universo, é mais pequena do que um grão de milho em relação a ela?"

Galileu,
"Carta a Ingoli"

segunda-feira, novembro 10, 2003

Sentada no ar


permanecer sentada no ar
não é talvez a melhor forma
de cantar dos dias que passam
embora a metáfora (do isolamento
indolor) até seja uma boa desculpa.

quinta-feira, novembro 06, 2003

Vila de Cão - 2

Após a provocação inicial do realizador, o mote está dado. A relação no e com o filme não se vislumbra fácil.

# 2 - O Aguçar das Arestas

Começamos por ser apresentados a uma aldeia aparente mente pacata.
Segunda nota: o minimalismo da aldeia. Quase me atrevo a dizer que este é um filme-laboratório. Todos os espaços concebidos restringindo-se apenas ao necessário (onde agora poderia fazer um segundo parêntesis para falar da sensação de clausura), todas as personagens as essenciais para recriar as múltiplas funções de um espaço social habitável e autónomo. Entre outros personagens(-tipo?), o camionista, com a “indústria de transportes” e ligação da aldeia ao exterior. A igreja, com a guardiã do templo que o conserva para um pastor que todos perceberam que não vai chegar. As crianças e a sua perfídia natural (onde aqui se deveria escrever bondade e já a perspectiva do realizador envenena novamente).

#3 - A Natureza Desumana

Neste aspecto mais uma vez o filme provoca. Vemos pessoas e não esperamos monstros, quando nos são apresentados esperamos neles tudo menos a maldade descuidada mas simultaneamente quase requintada.
De Dogville emerge um monstro, corporizado por todos os seus habitantes. Em conjunto, escravizam psicológica e fisicamente a visitante/forasteira que chega à aldeia. Grace é aceite na aldeia como fazendo parte de uma tentativa de Tom de criar bondade em Dogville, de estimular o acolhimento e o amor desinteressado. Onde a primeira cedência mais uma vez está em uníssono com o tema principal: é suposto que Grace estimule a bondade desinteressada, mas o método escolhido para conquistar a afeição de Dogville é o trabalho a favor de cada habitante. A partir daqui, tudo cresce em intensidade e se precipita, lenta e meticulosamente, até ao apocalipse final.


#Epílogo (?) – A Indignação da Escriba

Quando fui ver o filme pouco sabia sobre a estória. No entanto, quando a acção se começou a desenrolar e Grace chegou à aldeia, o que pensei foi: vai ser uma estória de entrega e de partilha. Uma estranha (estrangeira) que modifica a aldeia incutindo ou despertando nos seus habitantes o sentimento da dádiva e da entrega. Tal como diz Tom, no seu projecto, Grace é uma oportunidade que Dogville teve de descobrir sentimentos até aí apenas latentes. Tom tenta despertá-los e falha redondamente. Dogville é uma caixa de pandora, o desfecho o adequado à monstruosidade com que os seus habitantes reagem a Grace.

Tanto havia para escrever, que tentei abreviar ao mínimo. Do ponto de vista técnico o filme está intocável. Aliás, tem quase tanto de teatro como de cinema. Mas é tão forte o minimalismo do cenário (quem não se lembra dos arbustos?), como os jogos de imagem e de transparências (a cena de Grace dentro do camião de transportes) com que a câmara brinca connosco.
Apesar de extremamente pesado, um filme que dá que pensar e que é bom que nos irrite. Eu ainda estou, e se não me engano muito, o próximo post vai ser uma injecção de veneno directamente apontada ao filme e a quem o idealizou. Não se faz! ;)