quinta-feira, novembro 06, 2003

Vila de Cão - 2

Após a provocação inicial do realizador, o mote está dado. A relação no e com o filme não se vislumbra fácil.

# 2 - O Aguçar das Arestas

Começamos por ser apresentados a uma aldeia aparente mente pacata.
Segunda nota: o minimalismo da aldeia. Quase me atrevo a dizer que este é um filme-laboratório. Todos os espaços concebidos restringindo-se apenas ao necessário (onde agora poderia fazer um segundo parêntesis para falar da sensação de clausura), todas as personagens as essenciais para recriar as múltiplas funções de um espaço social habitável e autónomo. Entre outros personagens(-tipo?), o camionista, com a “indústria de transportes” e ligação da aldeia ao exterior. A igreja, com a guardiã do templo que o conserva para um pastor que todos perceberam que não vai chegar. As crianças e a sua perfídia natural (onde aqui se deveria escrever bondade e já a perspectiva do realizador envenena novamente).

#3 - A Natureza Desumana

Neste aspecto mais uma vez o filme provoca. Vemos pessoas e não esperamos monstros, quando nos são apresentados esperamos neles tudo menos a maldade descuidada mas simultaneamente quase requintada.
De Dogville emerge um monstro, corporizado por todos os seus habitantes. Em conjunto, escravizam psicológica e fisicamente a visitante/forasteira que chega à aldeia. Grace é aceite na aldeia como fazendo parte de uma tentativa de Tom de criar bondade em Dogville, de estimular o acolhimento e o amor desinteressado. Onde a primeira cedência mais uma vez está em uníssono com o tema principal: é suposto que Grace estimule a bondade desinteressada, mas o método escolhido para conquistar a afeição de Dogville é o trabalho a favor de cada habitante. A partir daqui, tudo cresce em intensidade e se precipita, lenta e meticulosamente, até ao apocalipse final.


#Epílogo (?) – A Indignação da Escriba

Quando fui ver o filme pouco sabia sobre a estória. No entanto, quando a acção se começou a desenrolar e Grace chegou à aldeia, o que pensei foi: vai ser uma estória de entrega e de partilha. Uma estranha (estrangeira) que modifica a aldeia incutindo ou despertando nos seus habitantes o sentimento da dádiva e da entrega. Tal como diz Tom, no seu projecto, Grace é uma oportunidade que Dogville teve de descobrir sentimentos até aí apenas latentes. Tom tenta despertá-los e falha redondamente. Dogville é uma caixa de pandora, o desfecho o adequado à monstruosidade com que os seus habitantes reagem a Grace.

Tanto havia para escrever, que tentei abreviar ao mínimo. Do ponto de vista técnico o filme está intocável. Aliás, tem quase tanto de teatro como de cinema. Mas é tão forte o minimalismo do cenário (quem não se lembra dos arbustos?), como os jogos de imagem e de transparências (a cena de Grace dentro do camião de transportes) com que a câmara brinca connosco.
Apesar de extremamente pesado, um filme que dá que pensar e que é bom que nos irrite. Eu ainda estou, e se não me engano muito, o próximo post vai ser uma injecção de veneno directamente apontada ao filme e a quem o idealizou. Não se faz! ;)

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