quinta-feira, novembro 20, 2003

Estórias do Comboio


Sem querer fazer concorrência ao J., não resisto a partilhar duas estórias que se passaram comigo recentemente. Uma delas foi há pouco, na viagem de volta para casa, pelo que a coisa ainda está fresca. Sem dar conta, fez-me lembrar de uma que já aconteceu -e me impressionou muito!- há uns tempos, e com o mesmo motivo.

As trocas de olhares

Não estou necessariamente a falar de flirts. Também os há no comboio e não é novidade nenhuma. Mas às vezes há olhares que comprometem mais do que isto. Talvez o embaraço de olhar alguém nos olhos, sendo ao mesmo tempo olhado. A incerteza de não saber o que pensar, estando a ser julgado pelo outro também.
Há olhares que não são nada disto. Poderiam eventualmente ser de flirts, muitas vezes são coisas bastante diferentes.

Olhar número um: O Predador

Aconteceu comigo hoje. Já saí tarde, e como bónus, trouxe trabalho para adiantar em casa. Como muitas vezes faço, para aproveitar a viagem vou a trabalhar no comboio. Geralmente a ler coisas, já que escrever é um bocadinho mais impraticável (embora em tempos de necessidade...). Entrei nos Restauradores, faltavam 8 minutos para o comboio partir. Sentei-me no primeiro conjunto de lugares vazios que vi (mais uma vez a vontade de evitar os outros olhares?). Os bancos estão dispostos em conjuntos de quatro, virados uns para os outros dois a dois. Nos bancos em que me sentei, os da frente eram vermelhos, reservados a grávidas e deficientes. Como se tem de dar prioridade, geralmente são os últimos a ser ocupados. Seria de esperar tanto mais neste caso, com o comboio previsivelmente vazio dado o adiantado da hora.
Pego nos meus papelitos e começo a ler. Às tantas ouço uma amena cavaqueira caminhante. Levantei os olhos e lá iam eles, um rapaz e uma rapariga na casa dos vintes e uma senhora já mais velha, todos muito divertidos na conversa. Por coincidência, o rapaz volta-se para trás e olha para mim. Ou seja, os olhos nos olhos.
Muitas vezes pergunto-me o que passa de nós quando olhamos alguém, se os olhares são transparentes sem sabermos e o que pensamos passa assim, com a maior das ligeirezas.
-Vai voltar para trás e vão sentar-se ao pé de mim, pensei.
Bingo! Eles já lá iam, havia lugares vazios ao fundo da carruagem, mas só oiço o rapaz dizer: -Ficamos já ali, há lugares.
E nem mais! Ei-los sentados ao pé de mim, ocupando os três lugares vazios entre tantos, sendo dois deles justamente os ditos bancos vermelhos! Mais, o dito rapazinho senta-se mesmo à minha frente.
-Há lata pra tudo e este é tem a mania que é chico esperto, pensei, e enfiei ainda mais a cabeça nos papéis. Mas a coisa prometia...
O rapaz e a rapariga sentam-se lado a lado. Mais, ela põe a mão no ombro dele. –Boa, pensei, ainda por cima são namorados.... Observo as mãos dela. Aliança de comprometida na mão esquerda. Ele levanta a dele, aliança igual.
O tipo não despegava. Fazia graçolas, olhava para mim. Continuou nisto a viagem toda. E a namorada, sem perceber nada: -Ai amor, ainda temos o jantar para fazer... Ou seja, viviam juntos. Saiam, saiam, era só o que eu pensava. Para meu azar, foram quase até ao fim da linha, saíram numa estação antes da minha.
Olha o que me havia de calhar na rifa, pensei, umas figuras destas, se a namorada o topa, ainda sou eu que os tenho de aturar...

Olhar número dois: Quero um buraco para me enfiar!

Mais uma vez estava nos Restauradores. À espera, dentro do comboio parado, muitos bancos vazios. Estava sentada de frente para as portas, via toda a gente a entrar e a sair, ao acaso, o movimento de fim de tarde. Entre eles passou um rapaz, com ar de ser um pouco mais novo do que eu. Olhei-o, a imaginar que idade teria. No mesmo instante ele olha para mim também, e ficámos a olhar um para o outro, de olhar inexpressivo.
Ele vem e senta-se à minha frente. Deixei de olhar e voltei a baixar os olhos para o livro. E fiquei pra morrer... Só ao olhar para baixo percebi que ele tinha o braço esquerdo amputado acima do pulso!!
Devo ter corado violentamente. Fiquei sem saber o que fazer ou pensar, fiquei em pânico! O pior, é que senti que ele podia aperceber-se disso. Eu não tinha olhado para ele por isso, era-me completamente indiferente a circunstância de o braço dele. Simplesmente, as duas coisas associadas produziam uma estranha combinação que me causava o embaraço total!
Lembro-me que vim o caminho todo a pensar se lhe devia pedir desculpas. Mas afinal de quê?!, só pensava.
Eu já não sabia o que fazer, só queria não estar ali. Mais uma vez foi o alívio quando saiu, ironicamente na estação precisamente antes da minha...

Conversar com os olhos

Onde se demonstra que a circunstância do olhar pode ser muito embaraçante. No comboio geralmente as pessoas não falam. Não falam com palavras, talvez, mas inevitavelmente falam com os olhares. E está lá tudo: a fanfarronice, a palavra agressiva, a pena, o embaraço. Os outros são o desconhecido e o pensamento alheio é sempre um grande mistério...

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